sábado, 11 de setembro de 2010

"Kelméricas - Religião no poder é fogo"

A primeira vítima da promiscuidade entre poder e religião é justamente o maior dos sustentáculos da democracia: a liberdade

Ricardo Kelmer
rkelmer@gmail.com

Sim, faz parte da democracia que o pensamento religioso tenha representantes na vida política do país. Porém, os cidadãos verdadeiramente democratas devem sempre estar atentos pra impedir que a religião ultrapasse seus limites de atuação e se instaure no poder. Porque a primeira vítima da promiscuidade entre poder e religião é justamente o maior dos sustentáculos da democracia: a liberdade. Há numerosos exemplos históricos das catástrofes que podem ocorrer quando a religião veste o manto do poder político. Mas fiquemos apenas num exemplo: a Santa Inquisição.

Também conhecida por Santo Ofício, a Inquisição é uma instituição católica criada no século 12 pra, inicialmente, combater as heresias, ou seja, as demais versões do Cristianismo. A novidade católica inspiraria também a futura igreja protestante, que em diversos países executou na fogueira os seus próprios hereges, inclusive católicos. Com o tempo outras motivações ideológicas, sociais e econômicas se misturaram ao caráter inicial da Inquisição e suas atividades variaram bastante de acordo com o país e a época mas, de modo geral, seu objetivo era combater tudo que representasse ameaça à supremacia católica.

A coisa funcionava assim: ao julgar necessário, a Santa Sé enviava seus representantes e instalava os tribunais que, após o julgamento, eram desfeitos. Pra que a Igreja não sujasse de sangue as próprias mãos, os tribunais apenas torturavam, extraíam confissões e julgavam mas no final os condenados eram entregues às autoridades locais pra que fossem punidos. O total de execuções é incerto e as estatísticas variam de dezenas de milhares a milhões de mortos em seis séculos de perseguições.

Pra ser um réu, bastava uma simples denúncia anônima da vizinha invejosa, o que fazia as chantagens e os subornos correr à solta, enriquecendo inquisidores e denunciantes e criando na sociedade um permanente clima de terror e paranoia coletiva. Os condenados, se tivessem sorte, sofriam apenas umas torturas educacionais ou teriam tomados seus bens e propriedades. Entretanto, se não confessassem exatamente os pecados que os inquisidores queriam ouvir, a pena era a morte. O método mortal mais famoso, embora houvesse outros bem mais engenhosos e criativos, era queimar vivo o condenado numa fogueira, sempre em público pra servir de exemplo ao povo. Quando descobriram que alguns morriam por asfixia antes de serem queimados, passaram a embeber enxofre na roupa dos condenados. Mas era tudo por amor a Deus.

Não há muitos estudos sobre a Inquisição no Brasil mas aqui ela também esteve presente, embora de forma menos intensa, condenando a maior parte dos réus por prática de judaísmo – e confiscando todos os seus bens, claro, pois não pense você que sai barato manter em funcionamento o escritório terreno do Reino de Deus. Nos séculos 18 e 19 os tribunais foram sendo gradualmente extintos na Europa e a Espanha foi o último país a fechar o seu, em 1834. A Inquisição, porém, se mantém viva na Igreja Católica até hoje, com o nome mais agradável de Congregação para a Doutrina da Fé.

Felizmente os tempos são outros e a Igreja já não tem o poder de torturar e queimar vivos aqueles que não seguem os dogmas de sua cartilha. A liberdade venceu a ditadura da fé. Mas é preciso que a sociedade continue sempre atenta pra que religião e poder não se misturem.

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